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Breve introdução à Improvisação Livre
Postado por Thiago Miotto em quarta-feira, 6 de junho de 2012.

De maneira introdutória, escrevi um primeiro artigo para o site Improviso Livre sobre as origens e desenvolvimento da improvisação livre até o surgimento das propostas de condução de Butch Morris, que utilizam sinais e gestos que ativam, modificam ou constroem materiais musicais visando uma improvisação estruturada que se desenvolve em tempo real, qualquer que seja o tamanho da formação. Abordarei tais propostas e seus potenciais num segundo artigo que em breve disponibilizarei. Recomendo a audição dos artistas e grupos citados aos que não conhecem ou estão iniciando na Improvisação Livre.

Boa leitura e críticas à vontade.

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“Se a improvisação tem sido uma constante na história da música, apesar de seu maior ou menor reconhecimento, o que distingue a improvisação livre contemporânea de qualquer outra, é a ausência de um marco normativo. A improvisação na música barroca, nas músicas folclóricas e populares, e no jazz, sempre joga com a presença de uma gramática, de um contexto regulado que pode obedecer a regras de contraponto, a acordos melódicos ou rítmicos, a determinadas progressões harmônicas. Qualquer dessas referências facilita o fluxo criativo dos improvisadores oferecendo um marco, alguns limites, algumas regras”. (Chefa Alonso)

Como coloca Derek Bailey no documentário On the Edge – uma das mais interessantes análises sobre a improvisação musical ao redor do mundo – é muito provável que a música na Terra tenha nascido através da experimentação e da improvisação.

Enquanto a improvisação é prática que remonta há milênios, às mais diversas culturas e localidades, a improvisação livre nos moldes como a conhecemos hoje, sem a necessidade de qualquer norma como norteadora do processo, surge apenas na segunda metade do século XX, influenciada, entre outros fatores, pela total liberação da dissonância que se deu através do surgimento da música atonal, pelo total abandono das formas clássicas, pelo foco composicional deslocado da relação entre harmonia e melodia para novos elementos (como explorações rítmicas complexas, dinâmicas, texturas, gestos musicais), pela quebra ininterrupta do discurso que se dá a partir de Stravinsky, pelo desenvolvimento da música concreta e eletrônica, que gerou todo um novo universo de sons e possibilidades, pelo surgimento da música indeterminista, principalmente a partir das propostas de Morton Feldman e John Cage usando elementos como o “acaso” em suas composições, e com a aparição do Free Jazz, que passa a buscar a experimentação sonora e o distanciamento das antigas regras num contexto de música improvisada, partindo muitas vezes de um tema que era desenvolvido livremente pelos músicos, sem hierarquias.

A partir desse momento, está plantada a semente dos elementos que serão uma constante no desenvolvimento posterior da improvisação livre: a experimentação timbrística a partir da exploração de técnicas estendidas e gestos musicais que fugiam à clara distinção e desenvolvimento de ritmos, melodias e harmonias; o fim da hierarquia entre os músicos, que agora podiam improvisar coletivamente, instantaneamente, sem reduzirem-se a solistas ou músicos de apoio (que “seguravam a base para os solistas”, como é comum no pensamento jazzístico); além de não mais se pautarem por uma gramática ou idioma musical rígido.

Chefa Alonso também coloca uma reflexão interessante, com uma interpretação social do surgimento da improvisação livre, colocando que ela “representa a utopia que muito desejamos: a existência de um mundo solidário e não hierárquico, onde não há qualquer sistema de controle ou subordinação”.

Podemos ver também a improvisação livre como reflexo de um mundo globalizado, onde todo gênero de informações surgidas nas mais diversas partes se encontra e se mistura num único contexto, formando um todo novo e outrora inconcebível. O que antes era mais claramente dividido ou nascido numa cultura ou região delimitada, hoje se encontra à disposição de qualquer pessoa que tenha acesso à informação, principalmente através da internet, o que garante o surgimento de mentes que não possuem raízes em uma única tradição específica, mas que tem a possibilidade de, conscientemente ou não, criar algo novo e inusitado com toda essa carga de informações a que estamos dispostos.

Assim, é possível ouvir reminiscências na improvisação livre que lembram antigas tradições musicais do Oriente, flertes com a música popular de alguma localidade, as experimentações mais ousadas da música de concerto do século XX, e sonoridades e desenvolvimentos instrumentais estritamente pessoais – frutos de anos de labor, reflexão e experimentação de um improvisador -, e tudo isso numa mesma improvisação, sendo gestado num mesmo instante, sem combinações prévias.

Enquanto nos Estados Unidos a música improvisada (que se enveredou ao longo das décadas por diversos caminhos) abandonava lentamente a necessidade das relações de consonância e dissonância, a ideia de resolução com a harmonia, os temas, o swing, as hierarquias e variações entre base e solistas e os fraseados típicos dos grandes mestres do Jazz, na Europa surgiam improvisadores que iriam propor uma nova forma de se abordar a música improvisada.

O sucesso de músicos como Derek Bailey, Evan Parker, Peter Brötzmann, e os grupos AMM e Spontaneous Music Ensemble em conduzirem o Free Jazz até a música de improvisação livre se deve a diversos fatores, incluindo atitudes extra-musicais que lembram ideologicamente a poética citação de Debussy:

“Não há teoria. Só tens que escutar. O prazer é a lei. Eu amo a música apaixonadamente e porque a amo intento liberá-la das tradições estéreis que a enrijecem. É uma arte livre que avança efusivamente, uma arte ao ar livre, sem limites, como os elementos, o vento, o céu, o mar. Nunca deve ser encerrada nem convertida em uma arte acadêmica”.

Sem marcos normativos ou uma gramática que direcionasse o fluxo do fazer musical, o que garantiu o estabelecimento da improvisação livre foi uma diretriz que a aproxima de qualquer outro contexto de improvisação, que é a necessidade do ouvir ativo como norteador de todo processo, seja este para soar “coerente” com o que está se desenrolando, como para soar contrastante e incoerente, como todo improvisador atento pode optar no fluxo da improvisação. Como nos aponta Gonzalo Abril no prólogo do livro Improvisación Libre, la composicion em movimento, da autoria de Chefa Alonso: “No fluxo da improvisação, como em qualquer processo interativo, se deve produzir um reajuste ecológico permanente entre os sujeitos, um processo coletivo de orientação da atividade, em que a percepção atual do modo em que se está efetuando o processo é uma parte essencial da geração desse processo”.

Conscientes disso e experimentando com os mais diversos tipos de formação (desde solistas até grandes grupos que foram criados posteriormente), os pioneiros da improvisação livre europeia trilharam, cada qual a seu modo, uma maneira de reinventar o fazer musical e o modo de se abordar os instrumentos, que agora eram explorados sem barreiras gramaticais, sem “certo” e “errado”, sem necessidade de apoio nas tradições.

Para citar somente dois exemplos que exploraram o mesmo instrumento: enquanto Peter Brötzmann abordava o saxofone tenor de uma maneira enérgica, explosiva e visceral, abusando de dinâmicas fortíssimas, registros extremos e sons rasgados e guinchados, Evan Parker aos poucos tendia mais à exploração de técnicas de extensão no instrumento, explorando todo gênero de articulações, multifônicos e abusando da respiração circular como apoio à criação de fraseados que lembram uma intrincada trama minimalista que vai se transformando pouco a pouco.

Enquanto a improvisação livre se desenrolava por inúmeros caminhos a todo vapor com solistas e pequenas formações, em alguns anos o surgimento de grandes formações gerou novas problemáticas a serem enfrentada pelos improvisadores: como manter um direcionamento claro e inteligível numa formação com dezenas de músicos em que todos são livres para interagirem como bem entenderem? Até que ponto a audição ativa sustenta o direcionamento de um fluxo musical num caso como esse?

Formações como a Globe Unity Orchestra apostavam em arroubos sonoros de grande intensidade, numa espécie de saturação de elementos explorada pela música de concerto atual (o que coloca o ouvinte numa posição de “procura”, de encontro súbito com caminhos simultâneos que muitas vezes não soam inteligíveis por não formar um todo direcionado). Tal exploração enérgica garantia algumas vezes resultados surpreendentes e noutras nem tanto, havendo também a problemática do total ofuscamento das linhas de alguns improvisadores por conta da diferença do potencial dinâmico dos instrumentos (compare o volume de um reco-reco a um trombone tocado em fortissíssimo, por exemplo). Ao longo do tempo e com a repetição de propostas do tipo, improvisações apoiadas puramente num arroubo sonoro se mostraram clichês; o caos deliberado aos poucos se assentava como saída fácil, se colocava como uma espécie de elemento inevitável ou quase obrigatório em certas formações.

Então em 1985 surge uma nova proposta para o direcionamento de grandes formações com o compositor, trompetista e regente Butch Morris, que começava a criar um vocabulário de sinais e gestos que visava ativar, modificar ou construir em tempo real um arranjo ou composição.

Os detalhes dessa proposta ficam para a segunda parte do artigo, que vocês poderão conferir em breve.



BIBLIOGRAFIA:

ALONSO, Chefa. IMPROVISACIÓN LIBRE, la composicion em movimiento: Dos Acordes, 2007.

BAILEY, Derek. On the Edge. Documentário sobre Improvisação.

GRIFFITHS, Paul. A música moderna: uma história concisa e ilustrada da Debussy a Boulez. Trad. C. Marques. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

STANLEY, Thomas. BUTCH MORRIS AND THE ART OF CONDUCTION. Tese de Doutorado, 2009.

WISNIK, José Miguel. O SOM E O SENTIDO, uma outra história das músicas: Companhia das Letras, 1989