Além do nosso blog, você poderá encontrar o Sonora Aurora no grupo do Facebook.

Don, Deewaar e Sholay: R.D. Burman & Kalianji-Anandji
Postado por Andre Carvalho em domingo, 7 de fevereiro de 2021.


Amitabh Bachchan no emocionante clássico 'Deewaar'(1975) 
com seu número da sorte estampado no braço


A década de '70 foi a década de ouro do cinema indiano. Não só pela composição dos filmes, mas principalmente por conta das trilhas sonoras. Vamos explorar algumas destas grandes obras.



Don é um filme de Chandra Barot de 1978; estrelado por Amitabh Bachchan, maior ator indiano de todos os tempos. No Brasil ganhou até um nome interessante, meio puxado pro faroeste: "E chamaram-lhe Don..."

Conta a história de um pobre artista de rua que precisa encarnar um poderoso mafioso que acabara de ser morto, trás ser forçado a encobrir o esquema de um policial corrupto. 

O introvertido e inocente cantor, na medida em que adentra seu personagem, torna-se cada vez mais a figura confiante e taciturna de seu falecido sósia, mas sem se distanciar de seu bom coração que o leva a proteger e querer dar uma boa educação a seus sobrinhos. 



Com um roteiro cheio de reviravoltas, o certo e o errado mudam de lado várias vezes, mas nunca por parte dos cidadãos comuns, e sim, sempre por parte das autoridades institucionais. 

Caso seja o primeiro filme indiano que você verá, o principal conceito que você deve deixar pra trás é o tempo dispendido para apresentar a trama. Com filmes que não baixam de duas horas, sendo o comum 02h30 a 03h00 de duração, tudo tem seu tempo e é apresentado com a devida calma, e mesmo os episódios de ação mais frenéticos são apresentados sem pressa. 

Se o embate entre John Nada e seu colega em They Live do Carpenter lhe causou algum estranhamento e até desconforto, prepare-se pra ver um épico de quase 20 min de saltos, golpes, socos e acrobacias impensáveis no meio de um cemitério, como é a cena final de Don.



Deewaar (1975) - de Yash Chopra e também estrelado por Amitabh Bachchan - narra a história de uma família no interior da Índia que cai em desgraça depois do pai sindicalista ser obrigado por mafiosos (sempre eles) donos de mineradoras a fechar um acordo desvantajoso para os trabalhadores. O pai foge e a mãe sozinha e desempregada se vê obrigada a mudar com os dois filhos pequenos para a então crescente Bombay. As crianças que até então tinham uma vida boa, passam a conhecer a dura realidade dos moradores de rua. Sem poder pagar pelo estudo dos dois filhos, o mais velho, Vijay Verma (Amitabh Bachchan), se sacrifica para que o irmão mais novo, Ravi Verma, possa estudar. Uma atitude que poderia unir mais a família acaba a separando, pois enquanto Ravi leva uma vida tranquila, Vijay vai sendo endurecido e talhado pela realidade das humilhações diárias do trabalho análogo à escravidão, se enclausura em seu próprio mundo e sua própria raiva, até que já crescidos, Vijay torna-se um mafioso, e seu irmão, um chefe de polícia. O resto é história.

Há uma cena muito emblemática em Deewaar (Caminhos Diferentes, no Brasil), onde Vijay já adulto e trabalhando como estivador no porto de Bombay, conversa com outro trabalhador, um velho muçulmano. Vijay lhe pergunta se trabalhando tantos anos no setor portuário, se havia visto ali muitas mudanças. O velho, sem nenhum ar de sabedoria, apenas cansaço, lhe diz:


-Nada mudou! Eu carregava caixas antigamente, e hoje também. É a mesma coisa. Tínhamos que pagar para uns criminosos locais nos deixarem viver. E hoje também, ainda tenho que pagar. As pessoas dizem que os tempos mudaram. Talvez... Mas sinceramente, só vi mudar as pessoas que nos extorquem.

Outra questão interessante é que enquanto Ravi naturalmente torna-se o filho obediente que vai com a mãe aos templos do deus Shiva, Vijay torna-se ateu por não conceber como pode pessoas honestas, de bom coração e religiosas, ainda assim sofrerem tanto. Uma discussão desse teor aparecer em um filme popular de um país onde a religião está entranhada em todos os aspectos da vida cotidiana, para quem vê de fora, é algo imensamente desafiador, mas em Deewaar aparece como um questionamento natural. 

***

As trilhas de Don e Deewaar foram compostas pelos irmãos Kalyanji & Anandji, que juntos trabalharam em mais de 250 produções (!!!) indianas.

***


Outro grande filme indiano, e primeiro grande sucesso comercial do país, é Sholay (Cinzas, no Brasil) de 1975, também estrelado por Amitabh Bachchan mas dessa vez dirigido por Ramesh Sippy. A obra nos conta sobre Veeru (Dharmendra) e Jai (Amitabh Bachchan), dois bandidos com um certo código de honra que são recrutados por um antigo inspetor de polícia que os perseguiu no passado, mas que dessa vez necessita seus serviços para proteger uma pequena aldeia de um temível e cruel caudilho chamado Grabbar Singh (Amjad Khan). 

O filme, que quebrou recorde ao ficar por mais de 25 semanas consecutivas em mais de 100 cinemas ao redor do país, e que também fez um estrondoso sucesso na União Soviética, discute pontos delicados do efervescente cenário político indiano dos anos '70, como por exemplo, o princípio de não-violência idealizado por Ghandi, inclusive com uma certa propensão a ser contrário a este método. 

Claramente inspirado em clássicos como Os Sete Samurais de Kurosawa, e outros clássicos de faroeste como Era Uma Veste No Oeste de Sergio Leone, Sholay recebeu uma singela classificação de "curry western". 

A trilha foi composta pelo mundialmente famoso R.D. Burman, o qual inclusive ganhou uma faixa homônima ao seu nome no maravilhoso album Ragged Atlas do Cosa Brava (Fred Frith, Carla Kihlstedt e grande elenco).





Mesmo particularmente considerando tanto Don como Deewaar como obras maiores, Sholay foi a que teve disparado o maior impacto cultural na Índia. Quase 50 anos depois, sua história, roteiro e trilha sonora ainda emocionam e reverberam em programas de TV, filmes, música, rodas de conversas casuais e qualquer outra esfera da vida cotidiana. As homenagens que atores, produtores e o diretor Ramesh Sippy já receberam foram incontáveis, assim como são incontáveis as versões que ganhou para teatro e remakes - autorizados ou não - no cinema. 

A obra teve diversas cenas censuradas por serem consideradas violentas demais, mas foi seu final que mais gerou polêmica, já que o governo da época não viu com bons olhos um cidadão comum tomar a lei em suas mãos para realizar justiça. 


Haveria ainda outros grandes clássicos pra citar, como Qurbani (1978), Dharmatma (1975) ou Haadsaa (1982), além claro, da belíssima e emocionante Trilogia de Apu, dirigida por Satyajit Ray, mas esta pode ser uma conversa futura. Para qualquer um dos três filmes falados aqui que for escolhido para ser visto, tem-se a certeza que mais que um entretenimento e aventura para passar o tempo, existe principalmente a imersão em um modo de vida, a honestidade e simplicidade na forma de contar histórias que pode dizer muito mais sobre um povo que qualquer tratado sociológico. 


[DOWNLOAD]
[DOWNLOAD]
[DOWNLOAD]

Marcadores: ,