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Postado por Thiago Miotto em terça-feira, 5 de agosto de 2008.

Entrevista - Peter Brötzmann

Pessoal, estou inaugurando mais uma possibilidade - a (entrevista) - aqui para quem quiser postar e enriquecer as informações de quem aprecia os artistas. Peço apenas que deixem os devidos créditos dos entrevistadores/tradutores e em que lugar foi escrito ou publicado. Enfim, começo as entrevistas aqui com uma atualíssima, retirada da revista Jazz.pt:

Peter Brötzmann
Poder de fogo.
Entrevista por Nuno Catarino.

Jazz.pt / 20 Julho 2008

Nuno Catarino: O álbum «Machine Gun» é considerado um dos grandes álbuns free de todos os tempos, na sequência de discos como «Free Jazz» de Ornette Coleman e «Ascension» de John Coltrane...

Peter Brötzmann: Sim, acho que esse disco se tornou numa espécie de clássico europeu. Especialmente para as gerações mais novas, é um disco bastante importante.

O ROVA Saxophone Quartet editou o ano passado uma regravação de «Ascension». Consideraria a hipótese de fazer o mesmo com o seu «Machine Gun»?

Não, é impossível! Há alguns anos atrás cometi o erro de tentar voltar a tocar a peça «Machine Gun» com um novo grupo. Não funcionou. O «Machine Gun» nasceu naquela altura e foi um momento único. É tal como o disco «Ascension», por exemplo, o John Coltrane está morto e ninguém pode voltar a tocar como ele. Não faz sentido.

Outro grande álbum dessa época é «Nipples», que foi gravado no mesmo dia que «The Living Music» de Alexander Von Schlippenbach. Foram estes os primeiros grandes sinais da chegada da nova música improvisada europeia?

Sim, acho que sim. É claro que o Alex [Schlippenbach] seguiu o seu caminho e eu segui o meu, mas naquela altura tivemos a oportunidade de juntar as pessoas certas. Era uma altura em que todos os europeus andavam a trabalhar muito unidos: havia os holandeses, os ingleses, os alemães... Por isso foi uma boa época para a música, tentando todas as possibilidades, explorando todas as opções. Perdoem-me a imodéstia, mas naquela altura eu e Alex fomos importantes para o desenvolvimento da música europeia. É claro que havia outros, como os ingleses da Incus (Derek [Bailey], Evan Parker, Tony Oxley) ou o lado holandês (Misha Mengelberg, Han Bennink, Willem Breuker)... Uma coisa boa no «Machine Gun» é que tive a oportunidade de juntar todos estes tipos! O Derek entra no disco, o Willem Breuker também, há o Han Bennink, o Sven-Ake Johansson... Foi um excelente momento para o desenvolvimento da música!

Acabou de referir o guitarrista Derek Bailey, que faleceu em Dezembro do ano passado. Como recebeu a notícia?

O Derek era muito especial. E para além da sua grande técnica - e ele abordava a guitarra como ninguém tinha feito antes – ele estava sempre a pensar a música, de uma forma muito especial. Se lerem os seus livros, principalmente os jovens músicos, podem aprender imenso sobre a maneira como ele pensava a improvisação. É uma maneira de pensar muito europeia, e particularmente muito inglesa, mas muito diferente da maneira como os americanos pensam sobre música. Se olharmos agora para trás, vemos que os europeus foram muito mais além do que os americanos. Os americanos – quem quer que fosse naquela altura, quer fosse Ornette Coleman, Coltrane, Sun Ra, todos os grandes músicos - sempre seguiram numa tradição que nós, europeus, não temos! Por isso tivemos de encontrar uma forma própria de lidar com a nossa tradição, com o nosso modo de vida, com o nosso envolvimento social. E assim a nossa música foi muito mais além do que os americanos sempre fizeram. Os americanos sempre usaram muito mais regras, acordes, escalas... Por exemplo, o Derek nunca tocou qualquer espécie de canções ou coisas comuns de maneira tradicional. Nós éramos capazes de trabalhar de um modo muito mais livre do que os americanos faziam.

A palavra jazz é adequada para classificar a música que faz?

Eu classifico-me como músico de jazz. Penso que, de uma forma muito pessoal, estou a seguir uma tradição de saxofonistas, de tenores. E tento trabalhar com todos os elementos que aprendi com os músicos americanos. Apenas adapto estes elementos à minha maneira, mas acho que sou um músico de jazz, sim. Os meus saxofonistas de referência são Sonny Rollins, Coleman Hawkins, Benny Carter, Don Byas, Eddie «Lockjaw» Davies...Ouvi muito estes músicos, todos eles me impressionaram muito e tentei retirar elementos da sua maneira de tocar para a minha música. Acho que aquilo que faço - ou aquilo que tento fazer - é tocar jazz. Obviamente, é uma questão de definição e o jazz não é apenas os doze compassos do blues ou os trinta e dois compassos das canções jazz... É uma forma de vida, é necessária dedicação! É necessário dedicar tudo o que se tem à música, ao instrumento, aos músicos com quem se trabalha. É isso que significa o jazz para mim por isso acho que estou a seguir esta tradição.

Um disco que descobri recentemente foi «Schwarzwaldfahrt», um duo com Han Bennink gravado no meio da Floresta Negra em 1977...

Essa foi uma experiência fantástica com Bennink! Fomos durante cinco dias, levamos um carro e um gravador de uma estação de rádio para a Floresta Negra, guiámos por diversos sítios e quando nos apetecia tocávamos. É uma bela correspondência entre a natureza, a música, as nossas emoções... E estava frio! Estava no fim do Inverno e estava muito frio e o tempo estava feio, mas foi uma experiência muito agradável. E devo dizer que gostei do disco, mas as reacções que recebi das pessoas, especialmente ouvintes mais novos dos Estados Unidos, é que adoraram!

A ideia de criar música a partir do nada ainda é apelativa para si?

É claro que os tempos mudam, passaram cerca de quarenta anos, mas a fonte da minha música continua a ser mais ou menos a mesma. Voltando à questão anterior, a música jazz não é uma questão de uns meses ou um ano ou um período curto, com o jazz estamos comprometidos a vida inteira. É uma espécie de viagem com a vida e uma tentativa permanente de aproximação àquilo que queremos realmente dizer. É o mesmo feeling e a mesma fonte que tinha há quarenta anos atrás. Continuo, agora obviamente com algumas circunstâncias diferentes, a tentar o mesmo. Mas quando chego ao palco e é hora de tocar, quer seja o trio com quem trabalho agora - com o Michael [Wertmuëller] e o Marino [Pliakas], quer seja o Chicago Tentet, o processo é sempre o mesmo.

Um dos meus grupos favoritos é o Die Like A Dog Quartet, que é um tributo a Albert Ayler e que muitos referenciam como sua grande influência. Acha que depois da edição da «Holy Ghost» Box Set, Albert Ayler está finalmente a ser reconhecido como uma das grandes figuras da história do jazz?

Acho que foi uma pessoa muito importante na história do jazz. O engraçado é que ele alcançou muito maior reconhecimento quando começou a tocar na Europa do que o que tinha nos Estados Unidos. Devo dizer que, para mim, esta box set foi como uma moda. Acreditem-me ou não, as pessoas já se voltaram a esquecer – mas foi um bom momento para se fazer e acho que o pessoal no Texas fez um óptimo trabalho. Mas é engraçado, ninguém fala no Eric Dolphy, por exemplo. Ele foi, pelo menos, tão importante como Albert Ayler. Algumas coisas neste negócio seguem caminhos esquisitos... Na mesma altura em que eu estava a fazer as minhas primeiras gravações, ele tinha começado a tocar da sua forma muito especial. Talvez algumas pessoas falassem sobre nós: «aqueles não sabem mesmo tocar» – e algumas ainda hoje pensam assim. Se ouvirmos a sua música percebemos que ele vem de raízes americanas muito profundas (da música de igreja, do gospel, do blues), algo que eu não tenho. Não sou uma pessoa negra num país branco, sou só um alemão na Europa, por isso a música é completamente diferente. Mas o caminho por onde tentámos ir era o mesmo, ao mesmo tempo.

Voltando ao Die Like A Dog Quartet, como conseguiu juntar estes músicos de proveniências diferentes?

Do quarteto, é o William Parker quem conheço há mais tempo, conheço-o há mais de vinte anos e quando preciso de um contrabaixista chamo o William. Por outro lado conheci o Hamid [Drake] algum tempo depois, em Chicago, e começámos a tocar em duo. Juntei o William e o Hamid e começámos a trabalhar em trio. Por essa altura estava a trabalhar com o [Toshinori] Kondo pelo Japão e também pela Europa. E lembro-me que estava com o Kondo num café em Amesterdão, estávamos a falar de música, concluímos que ambos adorávamos o Albert Ayler e decidimos fazer um grupo com este motivo. Então juntei o Hamid e o William e foi assim a que se completou o quarteto. Estávamos todos satisfeitos com o grupo, mas ao fim de uns seis, sete ou oito anos acabámos por nos separar. O Kondo estava mais interessado em tentar coisas mais electrónicas... Acho que o nosso último concerto foi aqui, em Lisboa, na Gulbenkian [Jazz Em Agosto]. Lembro-me que depois disso tivemos uma discussão e ele disse que queria fazer outras coisas. Eu continuei a trabalhar com o Hamid e o William, mas o Hamid estava a ter imensas solicitações e resolveu também deixar o Chicago Tentet. E agora reencontrei o Hamid há poucas semanas no Festival de Moers [Alemanha], estivemos a conversar e vamos voltar a tentar fazer qualquer coisa. Mas estou muito contente com as bandas que trabalho agora, com o Chicago Tentet e com este trio, também estou a trabalhar com um jovem baterista de Nova Iorque, Nasheet Waits... e as ideias não param!

Há pouco referiu que Toshinori Kondo estava mais interessado em electrónicas, nunca foi um território que lhe interessasse muito?

Gostei da maneira como Kondo trabalhou no quarteto. Anteriormente trabalhei com um holandês, Michel Waisvisz, um músico muito interessante nos anos 80. Ainda antes, nos anos 70 trabalhei com um inglês, Hugh Davies, que faleceu há algum tempo. Agora há quem chame a este trio com o Michael e o Marino um trio eléctrico, mas é apenas um baixo eléctrico! Também trabalhei com alguns japoneses, com o Otomo [Yoshihide], com a Ikue Mori... Mas não estou muito convencido com os tipos de agora. O problema com as electrónicas é que acabam por afastar a personalidade. Talvez eu esteja errado, mas é a maneira como vejo, é que soam todas ao mesmo. Estou mais interessado em vozes, em sons pessoais do que sons artificiais.

No seu grupo Brötzmann Chicago Tentet colaboram muitos dos grandes músicos free da actualidade, como Ken Vandermark, Mats Gustaffson, Joe McPhee...

Neste momento tivemos algumas mudanças, mas estou contente com os músicos. A boa notícia é que o Jeb Bishop, trombonista dos primeiros tempos, vai voltar para as próximas tours, ele teve problemas de audição mas está a melhorar e por isso estará de volta. Talvez no futuro não sejam dez, mas talvez onze. E Johannes Bauer acompanhou-nos na última tour, que correu muito bem. Por isso estou muito contente com todos os músicos. É interessante, nunca planeei que fosse um grupo fixo, mas no próximo ano vamos comemorar o décimo aniversário e para uma banda de dez elementos é notável!

E com tantos grandes nomes juntos, não há problemas de egos?

Não! É um fenómeno muito interessante nesta banda. É claro que gosto de músicos fortes, como o Mats [Gustaffson], o Ken [Vandermark] ou o Joe McPhee (que é um tipo muito modesto mas é uma pessoa muito forte), não quero músicos medíocres e simpáticos. Estar em palco é lutar, lutar com cada um, mas lutar pela mesma coisa. E é isso que, a meu ver, faz com que o Chicago Tentet seja uma grande banda.

Quem são os músicos que o continuam a inspirar hoje?

Continuam a ser os velhos músicos... Dos que continuam por ai, o Sonny Rollins... E o Ornette, claro! Mesmo que às vezes não goste muito das suas bandas, a maneira como maneja o saxofone, o fraseado, o timing e o seu belíssimo tom... Ele é fabuloso! Mas as minhas fontes mais profundas estão mais recuadas no passado. Coleman Hawkins, Don Byas, Lester Young, grandes mestres do saxofone. Mas também clarinetistas, como Pee Wee Russell ou Jimmy Giuffre, entre muitos outros. Agora é mais difícil, desde que o Miles Davis morreu sinto a falta de pessoas de realmente grande dimensão no jazz. O Cecil [Taylor] continua por aí, mas nunca me interessei particularmente por pianistas... Claro que há sempre altos e baixos no desenvolvimento e história da música, mas não temos nenhum Thelonious Monk ou pessoas com esse tipo de personalidade muito forte. Por isso só temos de fazer o nosso trabalho da melhor maneira possível e ver o que acontece.

E dos novos músicos, quem o impressiona?

Sem dúvida, os músicos com quem estou agora a trabalhar! Eles estão sempre a impressionar-me! Veja a intensidade com que o Michael [Pliakas] toca a bateria, é de loucos! Outro baterista, o jovem Nasheet Waits, é um grande músico, acho que tem um grande futuro. Há vários outros, mas é desnecessário mencionar todos os nomes. Volto a repetir, estou muito grato por ter a malta de Chicago por perto, por ter o Mats por perto, por ter o Michael e o Marino... Sou um homem com sorte!

Com o disco «Live at the Bottle Fest 2005», duo com o baterista Nasheet Waits, recuperou a sua editora Bro. Porque decidiu voltar à sua editora?

Há pouco falamos de «Machine Gun», mas antes desse disco tive um trio com Peter Kowald e Sven-Ake Johansson e editei nessa minha editora, chamada Bro, nos anos 60. Depois fundamos a FMP [Free Music Production] e as produções seguintes foram editadas nesta editora. Quis começar de novo e entretanto já fiz os «Bro #3» e «Bro #4». O número três é com outro baterista, Walter Perkins, e o número quatro é com o meu velho camarada Han Bennink. O disco com o Nasheet teve uma edição muito pequena [500 exemplares] porque o ano passado tivemos uma tour muito extensa nos Estados Unidos e precisávamos de algo para vender nos concertos. O Mark Helias da Eremite Records não pôde produzir o disco na sua editora por isso fizemos uma edição especial e chamámos-lhe «Bro».

O ano passado Anthony Braxton tocou com a banda de rock extremo Wolf Eyes num festival. Consideraria a hipótese de tocar com uma banda de rock experimental?

Não sei... Se realmente encontrasse um verdadeiro grupo rock experimental não diria que não, mas neste momento não vejo que aconteça. Os últimos cinco ou seis anos com os Last Exit foi uma grande experiência e foi qualquer coisa a meio caminho - todos vínhamos de diferentes backgrounds, [Bill] Laswell, Sonny Sharrock... Não sei bem o que está a acontecer exactamente na música rock. Talvez não esteja bem informado, mas o que ouço de tempos a tempos não me aparece assim muito interessante.

Para finalizar, depois de todos os desenvolvimentos ocorridos nos anos 60 e 70, como vê o free jazz actualmente?

Sempre tive problemas com o termo «free jazz», que leva muitos enganos. Penso que o verdadeiro «free jazz» aconteceu apenas no final dos anos 60 e início dos anos 70. A partir daí a música desenvolveu-se simplesmente. Eu não sou pessimista, há sempre músicos novos a aparecer, a tentar levar as coisas mais além. As dificuldades que vejo têm a ver com o modo como a música é tratada pelos media, e por media digo rádio e televisão, especialmente – quando à noite faço zapping vejo que aquilo que é vendido com o nome «jazz» é, na sua maioria, lixo. Nos anos 80 houve alguma esperança pela abertura a grandes audiências, maior presença nos media, mas de momento parece que voltamos para o underground. Só temos de trabalhar. Mas arranjar trabalho não é fácil, especialmente para as novas gerações – os músicos de vinte anos não têm espaços para experimentar. É o que falta à música, sítios para os músicos tocarem, da mesma maneira tal como nós fizemos no início. E o jazz não é só um processo estético, é também um processo social. Se não há oportunidade de conhecer pessoas, de viajar, de andar na estrada, a música acaba por não acontecer. É aqui que vejo o problema.

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